Cacau no Pará enfrenta falta de assistência e de regularização fundiária

14 de julho de 2022

Orgulhoso em ser apelidado como a capital do cacau no Brasil, o município paraense de Medicilândia vive em função do fruto. São produtores, atravessadores e indústrias processadoras movimentando a renda da cidade que tem pouco menos de 32 mil habitantes, mas representa quase 35% dos 70 mil hectares de área plantada no Pará. Embora relevante, o distrito tem apenas um único profissional de assistência técnica e extensão rural para atender todas as propriedades. É o que relata Elisangela Trzeciak, produtora rural e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Ela afirma que a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) não consegue chegar aos interiores da Amazônia.

Entre 2006 e 2015, Elisangela tentou investir no cacau orgânico por conta do valor agregado reconhecido no mercado, mas precisou interromper os planos. “Estava economicamente inviável de manter o orgânico por conta do preço dos insumos biológicos e pela falta de apoio profissional, sem saber se estava fazendo do jeito correto”, lamenta. A sensação de abandono quanto à assistência rural é uma realidade que se estende aos 28.500 produtores de cacau instalados na região da Rodovia Transamazônica.

Assistência técnica

Ao conversar com produtores nos arredores de Altamira, é comum ouvir reclamações sobre a baixa produtividade do cacau. A realidade é que a produção por planta é satisfatória. No entanto, a lacuna de assistência técnica contribui para perdas significativas ano após ano. Gleyca Andrade, coordenadora do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) nos entornos de Brasil Novo (PA), conta que, historicamente, há uma perda de rendimento de cerca 50% na região, considerando vassoura de bruxa e podridão parda, as vilãs da lavoura.

Verônica e José Renato Preuss, produtores de cacau no município, registraram desperdício de 70% da produção em decorrência de pragas e fungos. Desde que o Senar chegou, há três anos, as perdas no Sítio Santa Catarina chegam a no máximo 10% dos seis talhões. “Apenas com poda e calda borladesa, a produção aumentou de 300 gramas (de amêndoas por pé) para 600 gramas, sem precisar ampliar área”, conta Gleyca.

Além de negociar as amêndoas convencionais a preço de commodity, o que significa receber R$ 10,50 por quilo pago pelas indústrias processadoras, o casal percebeu que existe mercado para o cacau fino. Com a assistência técnica mensalmente, foi possível melhorar a saúde dos 8,5 mil pés de cacau, entre jovens e maduros, bem como aprimorar o processo de fermentação, etapa que define a qualidade das amêndoas. O casal, então, conseguiu mercado e passou a vender o quilo de cacau fino a R$ 25 direto para chocolatarias. Isso possibilitou driblar os atravessadores que cobram pela intermediação, assim como melhorou o retorno financeiro em comparação ao valor pago pela amêndoa commodity.

A lavoura saudável e mais produtiva fez tanta diferença, que deu origem à Kakao Blumenn, linha de chocolates artesanais feita no próprio Sítio Santa Catarina, pelas mãos de Verônica. Apesar de apenas 10% de toda a produção da fazenda ser destinada ao cacau fino e chocolate, representa 40% da renda dos negócios. Verônica conta que o retorno é tão positivo que quer ampliar para 30% a proporção do cacau para fabricação própria de chocolate até 2023.

Mesmo diante de tantos resultados concretos, Verônica conta que os vizinhos já recusaram visitas do Senar. Seja pela resistência à novidade, seja pela desconfiança sobre a capacidade dos profissionais, Gleyca admite que isto seja verdade. “São poucos os que percebem que orientação vale mais do que dinheiro imediato, e depois o retorno financeiro também chega”, diz.

Não é por acaso que cacauicultores do Pará têm o pé atrás quanto a este serviço de assistência. A Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), atrelada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), fazia o papel de Ater, mas deixou de desempenhar esta função e frustrou os cacauicultores. “A Ceplac, enquanto assistência técnica, deixou de existir. E, antes, ela estava completamente sucateada. Então, em muitos municípios os técnicos não existiam ou não davam conta”, lembra Elisangela Trzeciak.

Crédito rural

Sem a Comissão, outra barreira apareceu: a dificuldade em acessar o crédito rural. A exigência dos bancos, conta a produtora, é que se apresente um plano de manejo do cacau para que o dinheiro seja emprestado. No entanto, os bancos reconhecem apenas a Ceplac como instituição que tem o domínio para elaboração de projetos de crédito de cacau.

“Não reconhecem Emater ou instituições privadas que tenham técnicos que possam elaborar projetos para implantação de cacau ou recuperação de lavouras mais antigas. E isso dificulta o acesso ao crédito, os bancos não financiam porque não tem gente que conhece o cacau”, relata .

No dia a dia, Elisangela relata que os próprios gerentes de banco aceitam planos de manejo para pecuária, pois é mais fácil de ser aprovado do que aqueles específicos para cacau. “É mais fácil financiar projetos de pecuária porque aí a Emater faz, os técnicos privados conseguem elaborar mais facilmente, porque são resoluções mais simples e tem pessoas habilitadas.”

Outra dificuldade é que muitos agricultores querem financiar o cacau cultivado via enxertia, diferente dos plantados desde a semente em sistemas agroflorestais. O plantio com mudas não foi validado pela Ceplac. “Portanto, não consta na declaração de aptidão a riscos do banco, não tem dados, não foram validados e aí os bancos não financiam”, complementa.

Segundo a produtora Verônica Preuss, existe grande burocracia para conseguir acessar o financiamento, muito por conta da demora nas análises de documento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Em 2012, ela conseguiu R$ 19 mil de crédito rural, “o único que recebemos até hoje, e não por falta de tentativa”.

Para a fabricação do chocolate, ela exemplifica que um forno industrial é cerca R$ 18 mil, uma panela específica para o cozimento do cacau custa em torno de R$ 12 mil, além de manter o ar-condicionado ligado constantemente, cuja conta de energia chega a R$ 800 por mês. “É artesanal, mas preciso profissionalizar”, defende.

Regularização fundiária

Outro problema que afeta a tomada de crédito é a falta de regularização fundiária na Amazônia. Terras que aguardam definição de titularidade, análises demoradas do Cadastro Ambiental Rural (CAR) que não permitem avançar no Programa de Regularização Ambiental (PRA) e falta de demarcação de florestas públicas não-destinadas são alguns dos motivos que deixam agricultores familiares mais afastados das chances de financiamento.

Wilks Barreto, um dos poucos profissionais do SENAR na região de Brasil Novo (PA), acredita que quanto mais demorar a regularização das áreas na Amazônia, mais o produtor demora para se capitalizar e incrementar a produtividade de forma sustentável.

“Já vi produtor querer fazer o certo, querer investir em cacau fino, mas acessar o Pronaf requer uma série de documentos que muitas vezes ele não tem porque falta amparo dos órgãos”, relata. Neste momento de transferência da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) para o Cadastro da Agricultura Familiar, cuja mudança foi proposta pelo Ministério da Agricultura, os agricultores estão ainda mais preocupados com a sensação de morosidade e falta de apoio técnico.

À margem do grande agronegócio, os cacauicultores do Pará ficam invisíveis. Com isso, a dificuldade em tomar crédito pelo Pronaf faz com que muitos produtores procurem os atravessadores para intermediar as vendas para as indústrias processadoras. Isso porque, segundo revela Luiz Carlos Piacentini, engenheiro agrônomo em Altamira (PA) e membro do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), este intermediador faz o papel de financiador da safra.

“Tirar o atravessador do esquema de comercialização é complicado. Os agricultores não conseguem tomar crédito oficial e é com o atravessador que muitas vezes conseguem algum financiamento e até suprir o papel da Ater”, relata.

Dados e transparência

Comercializar o cacau commodity por meio de um atravessador fragiliza a transparência da cadeia produtiva, gerando, por exemplo, inconsistência de dados da produção no Pará, afirmam representantes da indústria. Anna Paula Losi, diretora executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), afirma que cerca de 98% das amêndoas produzidas no país passam por esta indústria. Pelos cálculos da entidade, o volume nacional processado na safra 2021 chegou a 197,6 mil toneladas.

Apesar de tamanha representatividade ao setor, os números são diferentes daqueles levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta para uma produção de 310 mil toneladas. “Somos responsáveis por grande parte do cacau processado no Brasil, e o volume que chega não é o mostrado pelo IBGE. Os números não correspondem à realidade, mas ainda são os dados oficiais”, ela comenta.

A inconsistência afasta a cacauicultura da rastreabilidade exigida cada vez mais pelos mercados. Indústrias processadoras como Cargill, Barry Callebaut e Ofi (antiga Olam) têm feito uma força-tarefa para que os agricultores entreguem a produção diretamente na planta de processamento, para terem melhor controle da origem da amêndoa. São estas empresas que posteriormente fornecem o cacau processado para a fabricação do chocolate.

Ciente de que o intermediador ainda tem papel relevante, elas também tentam integrar este profissional, até então marginalizado, para fazer parte do fornecimento do cacau. Em alguns casos, produtor e atravessador que trabalham junto com a indústria são bonificados com prêmios a partir do índice de produtividade e entrega.

“É um jeito de trazer esse atravessador de forma legal à cadeia, mostrar a agregação de valor que o cacau tem quando é feito com transparência e se torna um processo de ganha-ganha”, resume Igor Mota, gerente de agricultura da Nestlé.

Foto: Eduardo Lopes/QuartettoCom – Divulgação: Abicab e AIPC

 

Fonte: Globo Rural