Atraso na implantação do Código Florestal freia agro mais sustentável

11 de agosto de 2022

Uma década depois de o Código Florestal entrar em vigor, o Brasil vive um paradoxo: na prática, a lei mais contribuiu para adiar a regularização ambiental e a recuperação de áreas degradadas do que para valorizar a floresta em pé e consolidar um novo modelo de agronegócio mais sustentável.

O atraso na implantação vai do avanço lento na validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), com prazos repetidamente adiados, até a indefinição burocrática e operacional de mecanismos de incentivo, como as Cotas de Reservas Ambientais (CRAs). Uma combinação que resulta em passivo ambiental e limita um ativo estratégico em meio a mudanças climáticas e à crescente economia verde.

“A nova lei traz mecanismos interessantes se forem bem manejados. Mas o grande dilema é que tudo são possibilidades, pois ainda falta clareza e prática. É preciso que os governos tomem a iniciativa, porque a atuação espontânea dos produtores não vai ocorrer e só o mercado não resolverá essa equação na escala necessária”, analisa Carlos Hugo Rocha, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza e professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Ele observa que, historicamente, as leis ambientais no Brasil trouxeram um viés de comando e controle que deixou em segundo plano a postura de incentivo à preservação, provocando desconfiança. “Hoje, a tendência é o produtor pensar que o órgão ambiental vai limitá-lo ou complicar sua situação. Esse histórico faz com que ele não se voluntarie. E, caso queira fazer, ainda tem muitas barreiras e dificuldades. Isso se agravou com políticas públicas recentes, que trouxeram destruição e retrocesso. Além de estar passando a boiada, não temos rumo”, avalia.

A frustração aumenta pelo fato de o Código Florestal trazer potenciais que vão além da regularização. Estudos indicam que a restauração florestal pode gerar 2,5 milhões empregos diretos no Brasil até 2030. Fora o potencial de ajudar a conservar mais de 162 milhões de hectares de vegetação nativa, sequestrando cerca de 100 bilhões de toneladas de CO2, o que é crucial para cumprir o Acordo de Paris.

“A implementação do Código Florestal abre caminho para o setor agropecuário brasileiro se posicionar como o grande produtor de commodities agrícolas sustentáveis do planeta. Qual país tem condições de aumentar, por exemplo, a sua biodiversidade e disponibilidade hídrica? Nós temos. Mas, para isso ocorrer em larga escala, é essencial a atuação do poder público”, pondera Roberta del Giudice, diretora-executiva do Observatório do Código Florestal (OCF).

Atraso em números

Relatório recém-divulgado pelo OCF aponta que o cumprimento do Código Florestal ainda está distante nos 6,5 milhões de imóveis rurais do país. O déficit de Reserva Legal estimado no Brasil é de 16 milhões de hectares. A boa notícia é que o excedente de vegetação natural, que pode ser usado para compensar esse déficit, é cinco vezes maior: 86 milhões de hectares.

Com exceção de Rondônia e Pará, todos os Estados têm mais excedente do que déficit de Reserva Legal. Apesar disso, a regularização não é uma conta simples. “Hoje, o déficit está na mão de grandes produtores, pois a lei traz exceções para imóveis com até quatro módulos fiscais. E isso gera uma corrida em busca de terras para compensação, com problemas de disponibilidade em algumas regiões e preços oscilando conforme o mercado aquece”, explica Luciane Chiodi, sócia da Agroicone.

O resultado desse panorama é, muitas vezes, situações em que há formas legais de se regularizar, mas não da forma que o produtor consegue aderir. Outro gargalo é a falta de um processo mais transparente e impessoal de fiscalização.

“No caso de supressão de vegetação nativa, a condicionante para compensar é definida caso a caso, e isso é uma tremenda caixa-preta para o produtor. Além disso, quem tem déficit não é adequadamente cobrado para se regularizar. Então, só vai agir se houver fiscalização ou se algum agente de mercado exigir”, ressalta Beto Mesquita, membro da Coalizão Brasil, diretor de Políticas e Relações Institucionais do BVRio e fundador do Diálogo Florestal.

Complexidade e omissão

Um dos mecanismos-chave do Código Florestal que ainda está pendente é a Cota de Reserva Ambiental (CRA). Uma de suas vantagens é adicionar serviços ambientais, permitindo que o produtor gere renda com a área compensada.

Mas, além da validação do Cadastro Ambiental Rural, o processo de emissão é complexo, com exigências como o aval de um órgão público e o registro do título. Isso, associado à falta de instrumentos para a operação, traz resistência e insegurança jurídica.

“A CRA tem grande potencial, mas não avança por conta de falhas na regulamentação e pendências operacionais. Poderia haver um sistema público de registro desses títulos, por exemplo, um blockchain de compensação de Reserva Legal, mas isso ainda não foi feito”, ressalta Roberta, do OCF.

Especialistas também alertam que só a pressão dos mecanismos privados por uma cadeia mais sustentável não é suficiente se os governos não agirem tanto para operacionalizar os mecanismos do Código Florestal quanto para criarem programas de incentivo, como os que pagam por serviços ambientais.

“Hoje, o subsídio é feito para o lado errado. Há valores bilionários para agrotóxicos, mas não na mesma proporção para conservação. E, quanto maior a área, maior o subsídio. Mudar essa prioridade é possível, mas depende de um programa”, explica Rocha, da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.

Floresta em pé

Outra possibilidade trazida pelo Código Florestal é a criação de programas que remuneram produtores por manter a floresta em pé. As iniciativas são ainda mais importantes em meio à disparada dos índices de desmatamento no Brasil nos últimos anos, agravada pela falta de políticas públicas de proteção.

“Além de acabar com o desmatamento, precisa haver incentivo a quem quer transformar o sistema, o que passa por muito mais recursos na assistência técnica rural e no crédito verde. Essas políticas vão colocar a gente em uma trilha melhor, além de garantir o protagonismo agrícola do país. Afinal, se começarmos a ter baques em safras por questões climáticas, haverá problemas em cascata, impactando a economia”, alerta Isabel Garcia Drigo, gerente de Clima e Emissões do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Outro caminho é reflorestar para conter as emissões de gases de efeito estufa, que aceleram as mudanças climáticas. “Transformar isso em ações práticas fará o produtor olhar para suas áreas de preservação permanente e de Reserva Legal como ativos ambientais. Mas, para isso funcionar, é preciso ter estabilidade, segurança jurídica e respeito à norma legal”, analisa Mesquita, da Coalizão Brasil.

Neste contexto, a proteção da Amazônia é essencial. Mas o estudo do OCF mostra que quatro dos cinco Estados que mais desmataram desde 2008, proporcionalmente, ficam no bioma: Tocantins, Rondônia, Maranhão e Acre. Ainda revela que os maiores índices de desmates potencialmente ilegais ocorreram em Rondônia (86%) e no Pará (75%).

Na visão de Paulo Amaral, pesquisador sênior do Imazon, é por isso que efetivar a lei com políticas públicas acessíveis é tão importante. “Um sistema agroflorestal (SAF) pode ter ciclo produtivo em curto prazo e gerar renda enquanto se estrutura a restauração florestal. Mas isso passa por oferta de insumos, crédito e assistência técnica. Só assim haverá eficiência econômica com ganho ambiental”, diz.

Ele ainda enfatiza a importância do fortalecimento contínuo dos órgãos ambientais e da construção de um ecossistema de suporte a novas culturas, incluindo sementes de qualidade e apoio na estruturação das cadeias produtivas. “A restauração florestal tem potencial para trazer benefícios sociais, econômicos e ambientais. Mas não existe floresta em curto e médio prazo. Floresta é longo prazo. As decisões que vão ser tomadas agora devem levar isso em consideração”, conclui.

Foto: Divulgação

 

Fonte: Globo Rural